Esse é um dos pontos que chama atenção no livro Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, que destaca a miserabilidade da condição humana diante do desespero, da falta de condições dignas. Diante da indignidade, o ser humano se torna ainda menos digno.
Essa é a mesma impressão que se tem lendo a notícia do jornal The New York Times de 5 de janeiro – divulgada pela Folha de S.Paulo – contando detalhes das brigas de cães realizadas em Cabul (Afeganistão).
Em uma região de miséria, a aposta em brigas de cães estimula a imaginação de apostadores que sonham embolsar uma boa quantia e incentiva criadores que se absolvem de culpa argumentando que os cães são bem tratados e alimentados. Se eles têm comida e teto, o que é uma luta sangrenta para dar oportunidade de rendimentos ao dono e divertir a plateia, formada por milhares de homens e meninos? Coisa de macho. Um prêmio que pode chegar a US$ 50 mil não é pouco, especialmente em um país tão pobre.
Os homens parecem pôr à prova sua virilidade por intermédio dos cães, desafiando os opositores, argumentando que seus animais são mais fortes, mais enérgicos, mais jovens…
A defesa para a proliferação do “esporte” é a busca de diversão em uma terra com poucas oportunidades e a vocação natural, herança de décadas de guerra. Então, para relaxar e soltar seus brios, eles colocam para brigar galos, cabras, cachorros, carneiros, camelos. Recriminadas por uns, incentivadas por outros, as brigas prosseguem, realizadas duas vezes por semana, atraindo cada vez mais adeptos.
Em nossa cultura, acostumada a tratar cachorros como parte da família, como filhos queridos, que em certos casos chegam a comer no mesmo prato do dono, a simples menção a uma cena de cachorros lutando até sangrarem, caindo na rua abatidos, choca, revolta. Aqui os cachorros têm nomes, casinha, cobertor e laço na cabeça. Com o Ted, Rex, Lulu e tantos outros cãezinhos no colo, muitos se sentem indignados e devem até exclamar: que barbárie! E a luta entre cães passa como uma consequência funesta da miséria humana.
No entanto, muitos desses donos de cães, gatos, peixes, pássaros, hamsters, coelhos, pintinhos, cágados e tantos outros animais escolhidos para fazer parte de nossa convivência e serem estimados, reservam um espaço na agenda para se divertir no rodeio, ver briga de galo, torcer na farra do boi ou bater palma para o elefante forçado a fazer graça no circo.
Em Cabul eles pelo menos têm a "desculpa" da falta de diversão. E nós, com acesso a emissoras de TV do mundo todo, uma vida cultural rica com teatro, cinema, livros, paisagens maravilhosas para conhecer, internet acessível, que desculpa temos para fazer do sofrimento de animais a nossa diversão?
Até que ponto vai a miserabilidade humana que nos torna indignos mesmo quando podemos viver com dignidade?
“Primeiro foi necessário civilizar o homem em relação ao próprio homem. Agora é necessário civilizar o homem em relação à natureza e aos animais.” (Victor Hugo)
Por Nathalia Mota
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