27 de setembro de 2011

Humanidade e servidão: uma história de amor




“Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. (…). É difícil, portanto, para um homem em particular desvencilhar-se da menoridade que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou mesmo a criar amor a ela, porque nunca o deixaram fazer a tentativa de assim proceder. Preceitos e fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional, ou antes do abuso, de seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua menoridade. (…). Para este esclarecimento, porém, nada mais se exige senão liberdade.”
Immanuel Kant
Razão servil
O ser humano intitula-se “racional”, e desse modo pretende diferenciar-se dos demais animais. Não obstante, em toda a sua história, em todos os tempos, todas as civilizações, esses mesmos humanos têm perseguido, ininterruptamente, algo ou alguém que os livre da penosa tarefa de pensar. E, uma vez que o encontram, dificilmente abrem mão dessa “liberdade”. Tornam-se até dispostos a matar e morrer por ela.
Aqueles que assim procedem tornam-se servos. Adicionalmente, alguns imbuem-se diretamente de uma missão apocalíptica e tornam-se profetas. Mas ainda assim, servos, submissos a uma razão servil, pois renunciaram à autonomia crítica. A maioria dos servos simplesmente se contenta em obedecer às ordens dos profetas. Podem, porém, eventualmente, converter-se em soldados.
A razão servil nos conforta diante dos infortúnios da vida, dos eventos trágicos e inesperados, do sofrimento alheio, das injustiças do mundo, da violência, sobretudo nas suas formas mais abjetas. Tudo passa a ser parte de um grande plano: de Deus, dos donos secretos do mundo, do equilíbrio dos mercados, dos comunistas, dos judeus, dos alienígenas, dos reptilianos bebedores de sangue ou da marcha inevitável para o progresso e a redenção da humanidade. Basta sentar e relaxar. Ou participar alegremente.
Não admira, então, que muitos seres humanos têm um verdadeiro caso de amor com esta que é a pior forma de servidão: a que aprisiona a mente. Passam a vida inteira pulando de uma crendice para outra, secular ou espiritual, se apegando àquela que melhor se adapta à sua fuga da realidade, contra toda forma de questionamento e como forma de justificar suas próprias fraquezas.
Lavagem cerebral
A lavagem cerebral é uma expressão coloquial para o processo de renúncia à razão crítica. Não é uma imposição, pelo menos não para os humanos adultos, mas uma escolha. Aquele que por ela passa está disponível para tal procedimento. Por meio dela, o indivíduo humano abre mão de todos os traços de pensamento autônomo, adere a toda sorte de crendice que, na sua mente, dê significado e sentido “maior” à sua vida, ou ao menos conforma-se com um determinado estado de coisas, porque é mais cômodo ou “sempre foi assim”. E assim nascem as religiões, seitas, determinados movimentos sociopolíticos e, claro, a autoridade.
Sofrer lavagem cerebral não é privilégio dos estúpidos e ignorantes. Muitas pessoas inteligentes e eruditas passam pelo mesmo processo. Em vez da reflexão crítica, seu conhecimento é usado para torcer e distorcer a realidade, de modo a enquadrá-la na sua visão de mundo. São os que escolhem a certeza à verdade. Ou à ética.
Embora as cosmologias mágicas, ideologias milenaristas e teorias da conspiração sejam o terreno mais fértil para a lavagem cerebral, aqueles atrás dela podem encontrá-la indiscriminadamente em qualquer filosofia que capture sua imaginação. É o caso, por exemplo, daqueles que veem O Capital,de Karl Marx, ou A Riqueza das Nações, de Adam Smith, e Dois Tratados sobre o Governo, de John Locke, como os cristãos veem a Bíblia. Note-se que “ver” é diferente de “ler”. Muitos marxistas e liberais dogmáticos nunca leram essas obras, ou não leram na íntegra. Assim como muitos cristãos nunca leram a Bíblia. De fato, antigamente, os católicos eram expressamente proibidos de lê-la.
Claro, não ler pode até facilitar o processo. É mais fácil ser um seguidor de um texto sagrado quando não se sabe que este advoga a escravidão, ou o extermínio, ou o sexismo. Ou tudo isso e muito mais. Mas quem leu, sem o exercício da crítica, toma o que lá está escrito como mandamentos gravados em pedra. O autor é seu profeta. Pode ainda recorrer aos herdeiros do profeta para justificar, “contextualizar”, ou obedecer seletivamente aos seus preceitos. Ou tornar-se ele mesmo um desses herdeiros. É este o papel dos pastores, pseudointelectuais e líderes políticos.
É bom desconfiar de toda filosofia ou ideologia que adota um profeta já no seu próprio nome. Talvez seja mais adequado classificá-las de teologias. Tipos possíveis: cartesiana, kantiana, marxista, leninista, darwinista, freudiana ou lacaniana. E, claro, cristã, budista, confucionista ou kardecista. Melhor manter distância. Quase todo pensador tem algo importante a nos dizer. E também diversos equívocos, frutos de preconceito, ignorância ou erros de julgamento, das suas limitações pessoais ou daquelas de seu tempo. Definir-se como discípulo entrega a carência de consciência crítica.
A autonomia crítica implica assumir deveres e responsabilidades. Implica não ser escravo, nem das próprias paixões, e ter a honestidade para reconhecer os próprios erros e corrigi-los. Implica não fugir da luta, mas também fazê-lo de forma justa e coerente. Implica, enfim, um compromisso ético. Uma causa que não se atenha aos princípios éticos mais básicos não pode, ela mesma, ser justa e coerente, e não é condizente com a autonomia crítica.
Especismo
O especismo obedece ao mesmo mecanismo. Há aqueles que fogem desesperadamente da verdade, para não se sentirem obrigados a rever seus hábitos e conceitos. São os que dizem, por exemplo: “não quero nem ver [ou ler, ou ouvir] isso [um filme, livro, relato], senão vou me tornar vegetariano [vegano]”. Quando não conseguem escapar de um filme, livro ou relato, eles correm atrás das justificativas.
Eles podem dizer que, afinal, os animais não sentem dor, não são racionais. Quando você prova a um especista que os animais têm sentimentos, ideias, dor e prazer, o que ele responde? Ele pode dar de ombros e dizer que os animais foram feitos para nos servir; que a natureza é assim; que as vacas fariam o mesmo conosco; que os animais são bem tratados e não se importam que os exploremos e matemos, contanto que seja sem dor; ou que simplesmente ele não consegue ou não quer parar de explorar animais.
O especista mais inteligente busca teorias das mais disparatadas em que se apoiar. Ele pode dizer que “animais não têm direitos porque não têm deveres”. Quando você demonstra que essa tese contratualista é um convite ao infanticídio, genocídio, eugenia e outras práticas “nobres”, o que ele faz? Ele cria a teoria dos “deveres indiretos”. Quando você prova que a tese dos deveres indiretos nos acena à “higiene social”, eliminando todos aqueles indesejados da sociedade, ele corre para a barricada da tese comunitária: “nós protegemos todos aqueles que fazem parte da nossa comunidade”. Ou que respeitamos os outros pelo medo mútuo de uma “guerra de todos contra todos”. Demonstrado que tanto o direito quanto a ética provam o contrário, eles alegam que, bem, afinal de contas, isso se dá só porque somos todos humanos.
Assim, sem perceber, o especista passeia por teorias que se contradizem, ou circulam em torno de si mesmas, sem jamais resolver o impasse. Não importa. Contanto que suas certezas e conveniências continuem intactas. As conclusões já estão dadas – o argumento não importa. Essa é a razão servil: aquela que foge do esclarecimento, como dizia Kant, e prefere continuar na menoridade – o estágio em que a razão autônoma e crítica não é acessada.
Veganismo
Contra a razão servil, o veganismo nos convida ao exercício da autonomia crítica, do questionamento das verdades preestabelecidas, da recusa em aceitar a violência e injustiça como naturais e inevitáveis. É um processo de emancipação, de inconformidade, de abandono das fórmulas e preceitos da racionalidade vulgar e mecânica. Não admira, então, que a prática do veganismo leve muitos de seus adeptos a ampliar seus horizontes, a rejeitar e desafiar todas as formas de opressão, opondo-lhe um modo de vida pautado na ética, na justiça e no respeito.
Já vejo os espertinhos, queixosos e especistas em geral preparando-se para o bote. Antecipo-me: o veganismo não está livre da razão servil. Como anteriormente dito, os servos podem encontrar abrigo nas mais variadas filosofias e ideologias. Uns como seguidores, outros como profetas. E, dentre os veganos, eles podem optar por diferentes facções e mentores.
E o que é, então, um vegano crítico? Ele não recorre a lugares comuns, não usa de conceitos que sequer consegue fundamentar, nem adota teses fascistoides e misantrópicas. Ele entende que o veganismo não é uma resposta definitiva para todos os problemas do mundo, mas um método de questionamento, voltado para a noção de justiça em geral e os direitos animais em particular. Entende, ainda, que existem diferentes meios de alcançar estes fins, contanto que ambos sejam coerentes entre si.
O indivíduo crítico não se furta à autocrítica, e sabe que “crítica” e “relativismo” não se confundem, como acontece no pensamento pós-moderno. A crítica da realidade não tem por propósito imobilizar o sujeito, mas precisamente o contrário: libertá-lo da servidão, da menoridade. O vegano crítico entende que a exploração não é uma opção pessoal. Que a escravidão animal não é aceitável da mesma forma que a escravidão humana não o é. Que tudo que viola a dignidade inerente de um indivíduo é errado em si mesmo.
O veganismo crítico nos leva ao abolicionismo e aos direitos animais. Esta não é uma filosofia pronta e acabada, mas o veganismo é o primeiro e indispensável passo para sua consecução.
Epígrafe: KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: que é “Esclarecimento”? In: ________. Textos Seletos. Vozes: Petrópolis, 2005.
Fonte  - Por Bruno Muller
Por Nathalia Mota

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