- Ai, que horror! Jogando o peixe, ali, ele está vivo! – disse a esposa, chocada.
- É, mas o espetinho frito tu come… – respondeu o marido, com a mesma emoção de quem informa a hora certa.
- É, mas o espetinho frito tu come… – respondeu o marido, com a mesma emoção de quem informa a hora certa.
Esse diálogo eu ouvi na tradicional Feira do Peixe de Porto Alegre, evento anual que antecede a Páscoa. Multidões acorrem ao local, e muitos mais passam por ali em função de ser instalada no coração do Centro da capital gaúcha, e os ímãs são ativados. Filas se formam para comprar espetinho de filé de peixe frito, tainha assada na taquara, e para ver os tanques com carpas vivas. O cliente pede ‘uma bem grande’, o funcionário apalpa às cegas como se procurasse algo perdido no fundo de uma caixa de gordura, e o produto é levado em uma sacola plástica, ainda se debatendo – prova de que é fresco, mesmo. A farra do peixe.
Quem assiste de fora esse estranho ritual, onde por dias as ruas são tomadas de indígenas – acho que imunes à fiscalização da Secretaria de Indústria e Comércio – vendendo cestos made in China. Abrindo um parênteses, se alguém aí está preocupado realmente com a cultura deles, deveria se mexer para proibir a venda de embalagens plásticas e produtos ‘R$1,99′ que nada têm a ver com artesanato, fecha parênteses. As lojas tornam-se tsunamis de pessoas que, via bullying, escolhem os melhores ovos e coelhos de chocolate. Supostamente há uma motivação religiosa e de jejum nisso tudo, mas não creio que alguma dessas pessoas possa me explicar isso claramente.
Se a intenção é presentear quem se ama, porque esperar uma data específica, quando todos os demais o fazem? ‘Agora é dia de exepressar os sentimentos, pessoal”. E a isso as pessoas chamam de liberdade – enfrentar fila para comprar um ovo doce embalado em papel alumínio, pelo irresistível motivo de que os demais também estão comprando. Nessa hora, ninguém lembra do que viu na televisão sobre Amazônia, aquecimento global, protocolo de Kyoto, ursos polares se equilibrando em blocos de gelo e novo Código Florestal. Azar dos animais que ainda são silvestres, pois seu lar sofre um constante estupro em nome não da fome de criancinhas miseráveis – argumento esse que ronda o remorso dos ingênuos, já devidamente incorporado ao discurso dos aproveitadores de ingênuos – e sim para queimar lenha na fornalha faminta dessa locomotiva chamada consumo. Se as pessoas não compram por iniciativa, toca-se o alarme de ‘Páscoa’, e os lemingues humanos agitam-se até as 23h59min do dia em questão.
De outra sorte, quem é animal não-humano apenas sofre mais um tanto em cada uma dessas datas egoístas, digo, religiosas da humanidade. É peixe que tem que morrer sufocado pois a data pede ‘jejum’, é vaca leiteira no turbo de sua produção escravagista forçada, são os animais de criação sendo levados com mais rapidez para a guilhotina ‘humanitária’, feiras de filhotes desovando brinquedos-que-funcionam-sem-pilhas para as famílias ‘que amam animais’, é o almoço do domingo de Páscoa unindo familiares em torno de um caixão de crematório, acompanhado de arroz e salada.
Uma lágrima escorre.
Mas há quem se permita sair dessas filas, furar o bloqueio, olhar para os lados quando todos acham que marcham para a frente, cuspe fora seja lá o que o sistema tenha lhe colocado na boca, e sugerido a mastigação. Nenhum raio caiu na cabeça desses corajosos, apesar dos olhares tortos dos demais, e dos comentários tortos deixados em textos publicados na Internet.
A ironia mórbida da Páscoa é que a morte de milhões de animais como sacrifício – veja como ainda estamos com parte do cérebro morando nas cavernas – é ricamente ilustrada com imagens de animais felizes, coelhos dentuços sorridentes convidando à compra de afeto – ‘aceitamos todos os cartões’.
Marcio de Almeida Bueno
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Por Alex Peguinelli
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