24 de dezembro de 2012

A outra metade - O Manifesto de Loen sobre o Natal






TRADUÇÃO: ANNA CRISTINA REIS XAVIER; REVISÃO: ELIANA MOSER

Los patos y las palomas [Os patos e as pombas] y los cerdos y los corderos [e os porcos e os carneiros] ponen sus gotas de sangre [derramam suas gotas de sangue] debajo de las multiplicaciones; [embaixo das multiplicações;] y los terribles alaridos de las vacas estrujadas [e os terríveis gemidos das vacas esfoladas] llenan de dolor el valle [enchem de dor o vale] donde el Hudson se emborracha con aceite. [onde o Hudson se embebeda com óleo.] Yo denuncio a toda la gente [Eu denuncio todas as pessoas] que ignora la otra mitad, [que ignoram a outra metade,] la mitad irredimible [a metade irresgatável] que levanta sus montes de cemento [que levanta seus montes de cimento] donde laten los corazones [onde pulsam os corações] de los animalitos que se olvidan [dos animaizinhos esquecidos.] [...] Yo denuncio la conjura [Eu denuncio a conspiração] de estas desiertas oficinas [desses escritórios  solitários] que no radian las agonías, [que não mostram as angústias] que borran los programas de la selva, [que apagam os planos da selva,] y me ofrezco a ser comido [e me ofereço para ser comido] por las vacas estrujadas [pelas vacas esfoladas] cuando sus gritos llenan el valle [quando seus gritos enchem o vale] donde el Hudson se emborracha con aceite. [onde o Hudson se embebeda com óleo.] Federico Garcia Lorca

Nós, todos os animais

temos o dom mágico de sentir que existimos.
As pedras e as locomotivas, os tubérculos e os frutos não reconhecem a doçura do ar e do carinho da água, nem sentem a emoção de se aconchegarem uns nos outros.
Mas, para nós, os animais, a vida pode ser bela.

Logo será nossa festa ?

As guirlandas estão prontas, estão prontas as correntes, as facas, as gaiolas, os presentes. Em breve saborearemos mais ainda a alegria pelo fato de estarmos reunidos. Em breve os golpes e as facadas matarão mais do que normalmente. Os votos de "Paz na terra" e os “votos de felicidades" navegarão tranqüilamente sobre um mar de sangue ainda maior do que o habitual.
Muitos animais irão à grande festa: os vivos estarão em volta da mesa e os mortos, colocados no meio. Pois o mundo, como é dito, é feito de duas metades, uma nascida para reinar e a outra para morrer.

Feliz Natal, para quem ?

Haverá pinheiros, Papais Noéis super simpáticos, presépios com um boi e um menininho. O boi não sentirá o cheiro do pinheiro nem o da palha. Ele terá o fôlego rouco do animal que cai; a vida escapará por sua garganta cortada; e, em seguida, os Papais Noéis repartirão seus membros com as criancinhas.

Para quem
o Feliz Ano Novo ?

Em breve chegará o Reveillon, a noite dos 'bons vivants' com suas barrigas de cemitério.
Leitões que são amputados de seus rabos e de seus dentes, bezerros que são arrastados de joelhos para a derradeira viagem. Vocês, os mutilados, os prisioneiros, os asfixiados, os engordados à força, os eletrocutados, os estripados, a quem vocês se dirigem clamando piedade? Os 'bons vivants' com suas vozes melodiosas já cobrem seus gritos e ignoram seus lamentos. Eles falam de dons culinários e de forros de mesa rendados, eles celebram as talentosas mãos calosas (que seguram os facões, os funis, as redes) e o talento imenso de excitar as papilas gustativas cozinhando seres mortos. Ou você fala a língua deles ou você é um desmancha prazeres. Para fazer parte da família é necessário organizar...

... a comunhão
no sangue !

Natal ou Ano Novo sem perú, sem patê de fígado, sem salmão, sem caviar, sem ostras, sem leitão, sem mousse de pato, sem lagosta, sem chouriço, sem caviar... faltaria o essencial! Ter convidados e não oferecer carne, isso não se faz! Imagina, são nossos convidados, e devemos honrá-los, devemos provar-lhes nossa estima, mostrar como somos bons anfitriões!
Macabra comunhão paga com o preço de um sacrifício. Veja como te honro, imolei para você inúmeras vítimas! Somos seres iguais, dignos de ceifar as vidas daqueles que pertencem à outra metade.
Nesses tempos generosos, os mais pobres não serão esquecidos. Na França, são realizadas festas de reveillon humanitárias, e os pobres também receberão suas devidas partes de patê de fígado gordo. Depois serão mandados de volta para gelarem nas ruas, ungidos de dignidade.
La tierra toda el sol y el mar [A terra toda, o sol e o mar] Son para aquellos que han sabido, [são feitos para aqueles que sabem] Sentarse sobre los demàs. [passar por cima dos demais.] Me lo decía mi abuelito, [Isso é o que meu avô sempre me dizia] Me lo decía mi papà [e também meu pai.] Me lo dijeron muchas veces, [Me disseram tantas e tantas vezes,] Y lo he olvidado siempre màs. [e eu sempre ignore] José Agustin Goytisolo

E eu, qual o meu lugar

Eu que não tenho nem plumas, nem peles, nem espinhas... eu que sou, pela minha aparência, da raça dos sangradores. Como eu gostaria de agradá-los, como eu queria que eles me aceitassem, eu fingi acreditar na fábula das duas metades. Eu sabia, tanto quanto eles, saborear o gosto do assassínio e sabia rir espalhafatosamente dos cadáveres deliciosos. Mas, estar com eles custa muito caro.
Gostaria ainda assim que eles me amassem e gostaria de poder amá-los, mas vejo claramente que eles esmagam com sangue frio aqueles da outra metade, dos quais também faço parte. Nunca mais estarei do lado dos carcereiros. No dia da grande festa, se apenas existirem dois campos, escolherei o outro lado.
Tirem-me as vísceras como fazem com os esturjões ainda vivos. Explodem meu fígado, como o fazem com o dos patos. Arranquem meus testículos, como o fizeram com os outros animais que foram capados. Esquartejem-me, como fazem com as rãs. Fervam-me, como as lagostas são fervidas. Que dentes sorridentes coloquem minha carne em farrapos como aquela dos outros perus, bezerros, cordeiros e salmões.
É realmente necessário escolher entre o pior e o pior? Reunir-se aos supliciados que agonizarão abandonados de todos; ou bem aos assassinos que, risonhos, lambendo os beiços, apontam para o matadouro?
Não, não, não, não!

Eu denuncio

Denuncio a mediocridade e a covardia de desprezar os outros para assim se assegurar de sua própria importância. Denuncio o espírito comunitário que é construído tendo como base a exclusão. Podemos criar laços de formas diferentes, sem termos que ser cúmplices dos mesmos crimes. Esqueçamos o odioso mito do mundo dividido em duas metades, esqueçamos a sinistra máquina que fabrica a infelicidade.
Quero que existam, de verdade, os Papais Noéis gentis, a paz sobre a terra e a fraternidade. Que possa florescer o calor animal e a alegria de existir de porquinhos brincalhões, de patinhos amorosos e de seres humanos risonhos.
Para todos nós, os animais, a vida pode ser mais bela. Que, enfim, a verdadeira festa comece,

a festa sem sacrifício!



Por Nathália Mota

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